segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Capítulo 43, cena 2.


O homem calvo que atirava pedras a esmo estava de mãos vazias e mantinha as palmas das mãos viradas para o céu. Com um dorso nu amorenado, tinha as pernas das calças arregaçadas até a altura dos joelhos. Apesar de ele não demonstrar que estava prestando muita atenção no tempo, nuvens cinzentas prenunciavam algo iminente.

Num lindo vestido branco de renda, Maria Alice esboçava um sorriso tímido e forçado e não chorava mais, mas no rosto e nos olhos ainda exibia marcas de tristeza. Sentada num dos degraus da escada da igreja, mantinha as mãos espalmadas juntas e presas entre os joelhos. Ela olhava para o homem que atirava pedras a esmo, mas ele parecia ignorá-la.

O menino, que observava tudo curiosamente, tinha o rosto sujo de barro, estava descalço e guardava as mãos nos bolsos de trás da sua bermuda de sarja cáqui junto com o bodoque de forquilha de goiabeira com as tiras de borracha de câmara de pneu de bicicleta enroladas em volta das extremidades da forquilha. Seus olhos mantinham-se fixos em Maria Alice.

O estranho homem de roupa branca e óculos escuros, que parava o tempo com estalos de dedos, exibia um sorriso suspeito de canto de boca e me olhava como se quisesse dizer algo. Na porta da igreja, ele mantinha erguido o braço direito cuja mão estalava os dedos entre o anelar e o polegar.

O último estalo de dedo ficou ecoando durante um bom tempo dentro da igreja e os pingos de chuva começaram antes do último eco.  A chuva engrossava aos poucos e ia borrando a tinta ainda fresca.

O cheiro de terra molhada misturava-se ao da tinta acrílica. E muito antes de o homem que atirava pedras a esmo, Maria Alice e o estranho homem de roupa branca e óculos escuros se desfigurarem, o menino que observava tudo curiosamente correu, fugindo da chuva. Na fuga o bodoque caiu no chão enlameado, quando o menino tirara as mãos dos bolsos de trás da sua bermuda de sarja cáqui.

O menino parou de correr e voltou para apanhar o bodoque, foi então que ele olhou para mim e sorriu. A chuva começava a nos desfigurar simultaneamente… Não doía. Nada. E tudo ia ficando branco, branco, branco...

Era o encerramento do Capítulo 43, cena 2, sem diálogos.



segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Preciosidades


Duas semanas. Foi o tempo necessário para convencê-la, mas ele jamais perdia as esperanças, pois confiava demais no seu talento. E o que são os anos de estrada, dia após dia?

Prestes a fazer, ele pediu, ainda muito solícito, que ela permanecesse calma e respirasse profundamente pelo nariz. Não economizou no uso de uma pasta branca lubrificante, cuja mensagem no rótulo da lata garantia um sabor agradável de morango. Primeiro besuntou bem os dedos da mão direita, depois a palma, as costas e o pulso. E, enquanto iniciava metodicamente o ritual, sua mão esquerda também ajudava, contribuindo com um cafuné delicado e estratégico na nuca macia e loira da mulher.

Introduziu lentamente os dedos, um a um, e foi forçando a palma da mão. Logo em seguida, o pulso e o antebraço, deixando de fora apenas o cotovelo. Girou de jeito, atingindo enfim o estômago, como queria. Moveu os dedos para os lados até conseguir. Teve um pouco de dificuldade, mas, com a prática que tinha, localizou. Segurou firme entre as pontas dos dedos e começou a tirar. Bem devagar, para não traumatizá-la e estragar o objetivo da empreitada. E ela conseguira resistir, heróica e bravamente, com as pernas seguras sem balançar, o corpo relaxado e firme, mantendo na garganta o controle da própria ânsia.

E assim, quando se viu livre do que a impedia de falar, teve condições de perguntar se ele havia conseguido. No exato instante em que começou a ouvir um barulho estranho vindo do seu próprio estômago, um misto de ronco de fome com o som de ralo de tanque de lavar roupa esvaziando. E ele, na palma da mão ainda lambuzada, úmida e aberta, exibia o que conseguira trazer: uma pequena tampa plástica branca igual às de algumas pias de cozinha.

A coisa começou relativamente rápida. Sem entender muito o que lhe acontecia, ela primeiro perdeu a voz e a cor da pele do rosto. Depois, pasma, assistiu seu abdômen ir murchando, murchando até seu corpo ser sugado para dentro de si mesma, sumindo, sumindo, sumindo. Deixando apenas um som fininho, como um assovio, e um pequeno orifício meio cinza suspenso no ar.

Ele, por segundos, ficou admirando o pequeno efeito do rastro deixado pela sua mais recente conquista, até que, rindo satisfeito do próprio êxito, selou o orifício com a pequena tampa que ainda ocultava na mão. E, num gesto de destreza, apanhou-os no ar, orifício e tampa, e rapidamente os guardou numa garrafa transparente com tampa de cortiça. Guardou-a num armário, ao lado de outras dezenas de garrafas com conteúdo similar. Aos pés de uma das portas do armário, uma pequena placa metálica com uma palavra impressa que talvez indicasse algo significativo: “Preciosidades”.



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Fragrância de Patchouli

Como que rascunhada em um sketch book de algum espirituoso estudante de arquitetura, a casa de aparência sombria, em estilo vitoriano, destaca-se das demais, num bairro qualquer de alguma cidade moderna. O clima ligeiramente frio do outono, as árvores desnudas, e o chão, repleto de folhas mortas, exibe um belo tapete em nuances do amarelo-âmbar ao marrom, o que não ameniza o cheiro de umidade no ar. No lusco-fusco do pôr-do-sol, uma das janelas do segundo pavimento da estranha casa chama a atenção por ser a única com a luz acesa. Vidraças um pouco embaçadas da janela entreaberta, indicando a diferença de temperatura, e uma leve brisa faz as cortinas brancas de voal se moverem preguiçosamente. 

No quarto, a porta fechada, uma cama de solteiro, um roupeiro de três portas, um criado-mudo ao lado da cama, uma escrivaninha de estudante, próxima à porta do banheiro, todos em pau-marfim amarelecido pelo tempo; aos pés da cama, um tapete oval de crochê de barbante cinza e amarelo, e sobre ele, próximo à cabeceira, um par de chinelos femininos, apeluciados, branco com bolinhas pretas; a cama em desalinho, lençóis brancos amarrotados, travesseiro ainda quente na marca profunda da cabeça; uma camisola lilás de malha, estendida em cima da cama, com um coração vermelho estampado na altura do peito e, sobre ele, palavras em branco, em letras cursivas: “O amor está acima do bem e do mal”. Sobre o criado mudo, um abajur pequeno com cúpula cônica em tecido rústico bege e, ao seu lado, uma pequena escultura, em madeira de veios contrastantes, de um leão atacando uma mulher-centauro. 


Na porta do quarto, preso com percevejos dourados, um pôster em tamanho original do filme “Me before you” (2016), com uma seta feita com caneta esferográfica, indicando a palavra “you”. Bem distribuída na altura dos olhos, sobre a escrivaninha, uma pequena prateleira com livros e dvds de filmes. Alguns dos livros estão em pé, outros deitados, servindo de apoio aos demais. É possível ver os títulos em destaque pela lombada: “Travesuras de la niña mala”, de Mário Vargas Llosa; “Pedras de Calcutá”, de Caio Fernando Abreu; “Vitrola dos Ausentes”, de Paulo Ribeiro; “Exílio”, de Lya Luft. Entre os dvds de filmes estão visíveis: “Damage” (1992); “Così come sei” (1978); “Endless Love” (1981); “Romeo and Juliet” (1968); “The Notebook” (2004); “Dear John” (2010); “The time traveler’s wife” (2009); e “Her” (2013). Um pouco fora do alcance do olhar, atrás dos livros, três dvds de animações: “Wall-E” (2008); “Monster, Inc.” (2001); e “Up” (2009). Sobre a escrivaninha, o livro aberto de Mário Quintana, “Poemas”, edição de 2006, na página 23, no poema “Do amoroso esquecimento”, destacado com tinta luminescente amarela: “Eu, agora - que desfecho! / Já nem penso mais em ti.../ Mas será que nunca deixo/ De lembrar que te esqueci?”


Na parede onde a cama está encostada, um mosaico de fotos de viagens, com fotos de uma mesma mulher sorridente com amigos, talvez parentes, e duas delas se destacam: uma foto em que três pessoas fazem um trenó fictício na neve e outra em que as mesmas três pessoas estão, numa passarela, em poses estranhas, em ângulos de distância diferentes umas das outras. Aos pés da cama, quase despercebido, um cesto de vime com revistas de turismo, manuais de viagem e cds de música, empilhados e dispostos aleatoriamente. O cd de música que está sobre os demais é uma gravação doméstica, com uma seleção de músicas escritas no estojo e enumeradas à mão: “1 – Jar of hearts – Christina Perri; 2 – Are you lonesome tonight – Elvis Presley; 3 – A time for us – Andy Williams; 4 – Let me try again – Frank Sinatra; 5 – Romeo and Juliet’s love theme – Nino Rota; 6 – The way we were – Barbra Streisand; 7 – Cinema Paradiso – Chris Botti; 8 – Rapsody on a theme of Paganini – John Barry; 9 – Speak to me – Amy Lee; 10 – Love is a losing game – Amy Winehouse; 11 – A world without you – Bad Boys Blue; 12 – Look what you’ve done – Jet; 13 – Other side of the world – KT Tunstall; 14 – Drugs don’t work – The Verve; 15 - A Thousand Years – Christina Perri.” 


Do cesto de vime, fazendo precisamente um ângulo de 90 graus, está a porta do banheiro aberta. No banheiro há um balcão de pia, coberto com mármore travertino, e, atrás dele, um enorme espelho em toda a sua extensão, do chão ao teto; um vaso sanitário ao lado, e, em seguida, uma lixeira em madeira branca laqueada. Sobre o mármore da pia, um laptop Acer branco, com o Spotify Web reproduzindo músicas de Chico Buarque, com a tecla randômica acionada. Do outro lado, próximo a uma janela, em mansarda, numa espécie de água-furtada, uma banheira branca vitoriana quase transbordando. Uma espuma branca cobre toda a lâmina d’água e a água morna deixa escapar um leve vapor. O perfume suave de quatro velas aromáticas amarelas dispostas no peitoral da janela se mistura com a marcante fragrância de patchouli da espuma da água quente da banheira. As músicas complementam a atmosfera nostálgica da cena. 


Uma mulher, repentinamente, emerge da água e, em movimentos lentos e graciosos, senta-se colocando as mãos no rosto para liberar a respiração. As mãos vão do rosto aos cabelos castanhos, escurecidos e alisados pela água, e, fazendo um rabo de cavalo forçado e torcido, as pontas dos cabelos são colocadas próximas ao seio direito. O corpo da mulher é singularmente belo, desenhado com exuberância ímpar, cuja idade, discretamente, deveria ser medida, não em anos, mas em pouco mais que 25 pri-ma-ve-ras; pele cálida e alva, agora escorregadia pela água e o sabonete; seios medianos com aréolas roseadas e angelicais; pernas e braços longos, esguios e bem torneados; uma imperceptível marca de queimadura no braço esquerdo. A face da mulher exibe mais jovialidade sem maquiagem, ressaltada pelos olhos límpidos, com pupilas, em castanho-claro, generosas e cheias o suficiente para preencher perfeitamente o espaço entre as pálpebras de cílio longos; o nariz ferino com narinas aguçadas harmonicamente; os lábios carnudos, de um rubro raro, daqueles que, irrecusavelmente, clamam mesmo que calados. Boca cuja inata maleabilidade é capaz de gerar desde indulgentes beijos, dóceis e irrecusáveis sim(s), até mordazes não(s). 


Uma canção desperta uma lembrança, trazendo ao rosto da mulher feições de felicidade recorrente, no exato momento em que Chico canta os versos: “...O que será que me dá (?)/ Que me queima por dentro, será que me dá/ Que me perturba o sono, será que me dá/ Que todos os tremores me vêm agitar/ Que todos os ardores me vêm atiçar/ Que todos os suores me vêm encharcar/ Que todos os meus nervos estão a rogar/ Que todos os meus órgãos estão a clamar/ E uma aflição medonha me faz implorar/ O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que não tem governo, nem nunca terá/ O que não tem juízo”. A sagacidade de predadora não lhe falha e seu instinto exala pelos poros da pele, mas, por algum motivo muito particular, permaneceu indiferente ao perceber a presença do inofensivo invasor de privacidade. Ao olhar para o espelho, seu interesse parece estar muito além do reflexo. O esboço farto de um sorriso, suficiente para expor a celestial brancura dos dentes, é apenas uma isca. O intruso está descoberto. 


Com um fatal feixe de luzes do sorriso, sou atingido e nossos olhos enfim se encontram através do espelho. A imagem da mulher sorrindo é cinematográfica, entretanto também é fugaz e, em uma névoa esvoaçante, se desmancha no ar. Imediatamente, sou sugado para um túnel longo e escuro. Como “takes” de algum filme, o quadro congelado da cena da mulher sorrindo vai, gradativamente, diminuindo, para, em poucos segundos, se tornar apenas mais um pontinho luminoso na escuridão do céu. A canção de Chico ainda permanece cadenciada a ecoar pela noite. Sabe? Não doeria assim tanto, se enfim admitisse que parece ser tão pueril resignar-se com fragrância de Patchouli, com músicas, filmes, livros. Todavia, em doses homeopáticas, são, certamente, preventivos de Alzheimer.

“The past is but the beginng of the beginng,
and all that is or has been
is but the twilight of the dawn.”  (H. G. Wells)


quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A lenda das mulheres-demônio

... ou contagem regressiva para ser feliz.

Esteja certo, advirto. Dizem que não há como evitar. Você, como todos, irá se entregar. É inevitável. Parece destino, mas não, não é. Sua beleza é, sem sobra de dúvida, estonteante. Coisa de artista, sabe? Do imaginário fantástico das pessoas. Aquilo que brota inconscientemente, lá no íntimo. O rosto tem linhas suaves, harmônicas: os olhos azuis, verdes, cor-de-mel, raramente negros; o nariz levemente arrebitado; os lábios pequenos, mas de sorriso largo; os dentes perfeitos, extremamente brancos. Os longos cabelos, branco-amarelados. Por vezes, tão escorrido às meias costas; em outras, encaracolados. Sua nudez? A mais bela de todas. Ombros pequenos, seios firmes que enchem a mão da gente. Pernas esguias. Quadril para parir. Púbis angelical. Exalam um cheiro que inebria. Um dos segredos, provavelmente. Exagero? Não. É a mais pura verdade. E, quando se está diante de uma delas, é sempre a mais bela. E é o conjunto, ou as sutilezas, enfim, qualquer coisa nelas seduz, e assim mesmo, tudo tão facilmente. Ver para crer. Ela pousa diante de mim, levantando poeira. Asas enormes. Por segundos, fico na sua penumbra. Observo-a lentamente. Os pés (as unhas mais lindas já vistas), as pernas, o quadril, o ventre movimentando-se, os seios, os mamilos rijos, os lábios sorrindo, os braços abertos. Prestes a me acolher. Ela não manda, convida irrecusavelmente. E apenas movimenta seus lábios de um jeito quase impossível de descrever. Lentamente, caminho em sua direção, não por querer, pois, se pudesse, correria para aquele abraço. E, enfim, confirmo: o seu cheiro é realmente inebriante e é o conjunto que me seduz. Acrescento ainda: a atmosfera da superação do medo. A certeza de estar nos braços de quem, se não me ama, ao menos, me quer, seja para qual motivo for. Ela me abraça forte, como se tivesse receio de me perder. Movimenta, então, as asas gigantescas e, num movimento gracioso, leva-me para um destino incerto. A lenda, dizem, é que, após a cópula, elas costumam devorar os machos. Energia para a gestação. As sobras? Alimentarão os filhotes. A preservação da espécie. Em poucos minutos, próximo ao destino, avisto uma multidão de crianças. Involuntariamente, tento gritar, quando então uma das suas mãos de unhas em garra (não tinha percebido antes) se põe sobre meus lábios. Meu coração dispara. Ela percebe e ri, agora, não tão graciosamente.



quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Um nictófobo improvável


Propositalmente, cheguei tarde àquela apresentação, poucos minutos antes do que realmente me interessava. Como imaginava, meu assento estava lá, o único ainda vago. Só não previra a vizinhança de um fumante e de uma obesa. E não adianta conjeturar, pois todas as hipóteses sucumbem diante do fato.

Os poucos, porém longos, minutos que antecederam à aparição de Mariana custaram-me mais que o ingresso. Contribuíram sobremaneira aquele cheiro sufocante de nicotina na respiração e nos dedos do homem de meia idade à minha esquerda e a pressão do corpo descomunal da mulher obesa à direita. Não é preciso muito talento para prever o futuro das pessoas, principalmente em se tratando de algo tão óbvio, a morte. Irritado pelo desconforto, antecipei-lhes o fim, em silêncio, com meu exótico passatempo. A causa mortis de meus desconhecidos vizinhos de assento: enfisema pulmonar e infarto do miocárdio, respectivamente.

Para suavizar o transcorrer lento dos segundos e minimizar a monotonia, fugi da melhor maneira que conheço, pensando em Mariana. E ri de mim mesmo e das dezenas de psicólogos pelos quais testei competência por anos. Poderiam até ter diagnosticado, com respeitável imperícia, como obsessão, compulsão, síndrome pós-traumática, mas para mim sempre foi apenas um tipo salutar de cacoete de fuga. E era para as minhas lembranças com Mariana que eu corria para fugir do tédio e do marasmo dos dias.

Quase vinte anos se passaram e eu estava ali de novo, como sempre. Mas Mariana não, ela estaria diferente, muito diferente. O prospecto dizia que, no encerramento, ela faria um solo, acompanhada pela orquestra de câmara. Para ser sincero, pouco me importava o repertório e como seria sua apresentação. Eu queria apenas revê-la. Matar um pouco a saudade.

Quando ela apareceu no palco, iluminada por um holofote, todos então se calaram a ponto de se ouvir o som dos seus passos em direção ao microfone, entrecortado por uma tosse aqui, outra ali. Previsível. Estava linda, mas minha análise de beleza quanto à Mariana é suspeita e nunca será confiável. Num vestido branco longo, cabelo com brilho-umidificado, esticado e preso na nuca, as mais delicadas orelhas expondo dois pequenos brincos. Não pude evitar mais uma viagem ao passado.

A apresentação foi breve e seu efeito pareceu me deixar em estado catatônico. Absorvido pela voz e pelo ritmo. Não me contive e me socorri de um lenço providencial que não sei como mas estava no bolso do casaco. Evitei o tumulto do final e me dirigi à saída durante os aplausos. Minha presença ali era insignificante, pois para Mariana eu há muito não mais existia. Eis o diagnóstico frio da morte em vida, o destino dos fúteis ex-amores-pra-sempre. Antes de atingir a porta, num equívoco necessário, voltei-me ainda mais uma vez para o palco a ponto de vê-la recebendo flores de um homem. No que ela retribuiu com um abraço e um beijo, na boca, longo o suficiente para deixar claro o grau de comprometimento.

Mariana sempre fora uma romântica, muito embora nunca concordasse verbalmente com minhas observações conclusivas, taxando-as sempre de prematuras. Ela o amava, muito provavelmente. Um sentimento puro e inestimável que um dia fora direcionado só para mim. Um orgulho para mim, mais que tristeza da saudade. Aquela imagem ficou gravada, muito a contragosto, na minha retina, e, enquanto tomava a rua, excepcionalmente, deixei Mariana de lado, passando a conjeturar sobre ele. Aquele com quem Mariana passaria seus dias nas próximas duas décadas e meia. Esperava prognóstico melhor, mas lamentavelmente já sabia de antemão que só voltaria a ver Mariana em exatos 25 anos, 4 meses e dois dias. No funeral do marido. Quando poderei me reaproximar, então definitivamente.

Não, não é agouro ou qualquer outro sentimento motivado por ciúme ou inveja. Apenas uma espécie esdrúxula de penitência. A minha. O preço que cada coisa tem e pela qual devemos pagar. O amor, para mim, é algo sobre o qual nunca ousei um questionamento. Existe e basta, é definitivo. Jamais coloquei tal sentimento sob suspeição ou o subestimarei, como algum elaborado método de automutilação. Enquanto meus passos mecanicamente me levavam para qualquer lugar que não fosse à solidão do meu quarto de hotel, a lembrança ainda virgem me veio e passei a murmurar involuntariamente aquela canção que Mariana recém interpretara de maneira tão comovente. Refletindo melhor, talvez fosse eu quem deveria estar cantando aqueles versos de Moacyr Franco [... eu nunca mais vou te esquecer... eu nunca mais vou te esquecer... meu amor...].

Minhas experiências auto-sugestivas nunca foram tão fortes, eficientes e costumo ser realmente muito egoísta, além de egocêntrico. Mas é mais forte que eu, excede, foge de mim e o que devo fazer? Resignar-me, pois, para quem vive pra sempre, o que é o tempo? Nada, absolutamente nada! É viver ou deixar morrer.



terça-feira, 27 de novembro de 2018

Como a gente se apega...


Era o meu último daquele dia e foi preciso um cuidado redobrado. Ah! Apenas um canudinho. Um canudinho comum, desses brancos, com listas vermelhas longitudinais, mais grossos que os normais, e com uma parte sanfonadinha numa das extremidades.

Enfiei-o, cuidadosamente, no orifício da máquina, conforme ditam as instruções. Lá dentro é um pouco apertado, mas há privacidade e só se ouve o som das engrenagens, pois é preciso muita concentração no sopro, senão pode dar caca e sabe-se lá o que pode sair. Mas eu nunca tive problemas. Já me sentia bastante seguro ao fazê-lo, todavia fui bastante cauteloso, em razão da atmosfera que se cria, sempre a mesma, como se fosse sempre a primeira vez. Uma estranha sensação que me toma, num misto de ansiedade, euforia e medo. Sim, medo. Um medo quase aterrorizante, e sinto o coração disparar ao ver o látex aos poucos tomando a forma imaginada, avolumando-se e crescendo em curvas do outro lado. Depois, a cor, no início em tom bege bem suave, transformando-se num nuance mais clarinho, quase branco. E o final era fantástico, senão perfeito, e a mim, ao menos, muito particularmente, era sempre muito, mas muito gratificante. Sabe? Sentir aquele cheiro de novo, assistir a primeira inspiração, ao andar desajeitado, ao movimento dos olhos e dos lábios, ao primeiro sorriso. I-nes-que-cí-vel!

Outro dia, acidentalmente, uma se foi. Como pode um maldito alfinete fazer tamanho estrago? Foi uma brincadeira boba entre elas... Repreendi-as, claro! Elas até emudeceram ao estranharem minha reação, mas também... Meu! Fico... (Desculpe! Não consigo controlar a emoção!)

Fico com os olhos cheios ao lembrar, e a imagem de vê-la esvaindo-se daquela maneira, sem poder fazer nada, é de matar. Quase como perder uma filha. Claro! Nunca deixo transparecer, mas tenho preferência pelas Mônica(s). Amo-as todas, sem distinção, mas sempre há aquela afinidade instintiva, inexplicável. Então, lá estava eu para tentar reconstruir a perfeição e a harmonia. Dez reais, a entrada. Até que não é caro e vale a pena. E fui tentar repor quem se fora tão cedo e de maneira tão tola. E parece que era para ser assim, pois dera tudo certo. E em casa já tenho (adultas, todas!): duas Jennifer(s) Connelly, duas Isabelle(s) Adjani e, com esta última agora, três Mônica(s) Bellucci.

E não há o que possa retratar a felicidade que me dá ao vê-las daquele jeito tão espontâneo e natural, brincando, conversando e rindo, nuas pela casa, e me perco ao admirar aquelas bolhas, como as de sabão, saindo das suas bocas ao falarem meu nome. Como a gente se apega! Como a gente se apega!


segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Seleção Artificial

“... Feia!... Feia!... Feia!... Feia!... Bonita!... Feia!... Bonita!... Feia!... Feia!... Feia! ... Feia! ...” – Assim mecanicamente gritava o selecionador, entediado como sempre, sentado num desconfortável trono de madeira, enquanto afagava a sua longa e grisalha barba.

As selecionadas, as bonitas, sorridentes e satisfeitas por terem sido escolhidas, imediatamente entravam na gigantesca máquina por uma portinhola. E, em questão de minutos, ouvia-se o estrondo, o ritmo das engrenagens se acelerava, jatos de vapor e fumaça saíam pelos canos de descarga, e a energia então voltava a ser de cem por cento. Mas só durante uma ou duas horas, dependendo do grau de beleza, quando então, finda a energia, todas as lâmpadas voltavam a exibir aquela fraca luminosidade quase âmbar, até que outra das bonitas entrasse na máquina, repetindo todo o processo. Mas, há um bom tempo, a escolha de beldades rarefazia-se. 

E, no gigantesco pavilhão para onde eram destinadas as rejeitadas, uma imensidão delas aguardava novas ordens, até que dois dos encarregados pelo encaminhamento, não se contendo mais, tomados pelo desânimo e pela dúvida sobre o que fazer, abriram discussão:

“O selecionador já está velho e muito exigente. O que iremos fazer se ele raramente acha alguma delas bonita?” – Questionou inconformado, o mais jovem. Até que o mais experiente, num breve átimo de bom senso, teve uma idéia que achou brilhante. 

“Vamos reencaminhar as rejeitadas!” – Disse bastante decidido.

“Mas o selecionador irá devolver tudo de novo! Não adianta!” – Retrucou o mais jovem, ainda desanimado.

“Não! Não, se nós dermos um bom trato em cada uma delas. Elas não são ruins de todo. Veja. Analise. Por que toda essa nudez? Por que não as vestimos, com umas roupas mais sensuais que ressaltem o desenho do corpo, caprichamos nuns penteados, mais fashion, e, no rosto, maquiagem, muuuuita maquiagem? Hein?! Hein?!” 

E assim, reencaminhadas, as rejeitadas ficaram e estavam irreconhecíveis. E o velho selecionador, com um brilho diferente nos olhos, mas ainda muito babão, mudou radicalmente o discurso:

“... Bonita!... Bonita!... Bonita!... Bonita!... Lin-da!... Feia!... Bonita!... Ma-ra-vi-lho-sa!... Bonita!...”

E, desde então, com a máquina sempre em pleno funcionamento, nunca mais houve queda de tensão. Mas, apesar dos esforços, ainda assim sobravam algumas poucas rejeitadas, às quais, infelizmente, não houve outro destino: a reprodução sexuada.

Consequentemente, estas, muito a contragosto, tiveram que se submeter, tendo que copular com os então chamados reprodutores: uns homens esquisitos, altos, fortes, corpos atléticos, sempre seminus a exibirem orgulhosos suas destacadas barrigas-tanquinho. E, entre elas, completamente resignadas, tornou-se comum ouvir uma expressão, sempre repetida: “...Fa-zer-o-quê?! ...Fa-zer-o-quê?!”.