Como que rascunhada em um sketch book de algum espirituoso
estudante de arquitetura, a casa de aparência sombria, em estilo vitoriano,
destaca-se das demais, num bairro qualquer de alguma cidade moderna. O clima ligeiramente
frio do outono, as árvores desnudas, e o chão, repleto de folhas mortas, exibe
um belo tapete em nuances do amarelo-âmbar ao marrom, o que não ameniza o
cheiro de umidade no ar. No lusco-fusco do pôr-do-sol, uma das janelas do
segundo pavimento da estranha casa chama a atenção por ser a única com a luz
acesa. Vidraças um pouco embaçadas da janela entreaberta, indicando a diferença
de temperatura, e uma leve brisa faz as cortinas brancas de voal se moverem
preguiçosamente.
No quarto, a porta fechada,
uma cama de solteiro, um roupeiro de três portas, um criado-mudo ao lado da
cama, uma escrivaninha de estudante, próxima à porta do banheiro, todos em pau-marfim
amarelecido pelo tempo; aos pés da cama, um tapete oval de crochê de barbante
cinza e amarelo, e sobre ele, próximo à cabeceira, um par de chinelos femininos,
apeluciados, branco com bolinhas pretas; a cama em desalinho, lençóis brancos
amarrotados, travesseiro ainda quente na marca profunda da cabeça; uma camisola
lilás de malha, estendida em cima da cama, com um coração vermelho estampado na
altura do peito e, sobre ele, palavras em branco, em letras cursivas: “O amor está acima do bem e do mal”.
Sobre o criado mudo, um abajur pequeno com cúpula cônica em tecido rústico bege
e, ao seu lado, uma pequena escultura, em madeira de veios contrastantes, de um
leão atacando uma mulher-centauro.
Na porta do quarto, preso
com percevejos dourados, um pôster em tamanho original do filme “Me before you” (2016), com uma seta
feita com caneta esferográfica, indicando a palavra “you”. Bem distribuída na altura dos olhos, sobre a escrivaninha,
uma pequena prateleira com livros e dvds de filmes. Alguns dos livros estão em
pé, outros deitados, servindo de apoio aos demais. É possível ver os títulos em
destaque pela lombada: “Travesuras de la niña mala”, de Mário Vargas Llosa;
“Pedras de Calcutá”, de Caio Fernando Abreu; “Vitrola dos Ausentes”, de Paulo
Ribeiro; “Exílio”, de Lya Luft. Entre os dvds de filmes estão visíveis:
“Damage” (1992); “Così come sei” (1978); “Endless Love” (1981); “Romeo and
Juliet” (1968); “The Notebook” (2004); “Dear John” (2010); “The time traveler’s
wife” (2009); e “Her” (2013). Um pouco fora do alcance do olhar, atrás dos
livros, três dvds de animações: “Wall-E” (2008); “Monster, Inc.” (2001); e “Up”
(2009). Sobre a escrivaninha, o livro aberto de Mário Quintana, “Poemas”,
edição de 2006, na página 23, no poema “Do amoroso esquecimento”, destacado com
tinta luminescente amarela: “Eu, agora -
que desfecho! / Já nem penso mais em ti.../ Mas será que nunca deixo/ De
lembrar que te esqueci?”.
Na parede onde a cama está
encostada, um mosaico de fotos de viagens, com fotos de uma mesma mulher
sorridente com amigos, talvez parentes, e duas delas se destacam: uma foto em
que três pessoas fazem um trenó fictício na neve e outra em que as mesmas três
pessoas estão, numa passarela, em poses estranhas, em ângulos de distância
diferentes umas das outras. Aos pés da cama, quase despercebido, um cesto de
vime com revistas de turismo, manuais de viagem e cds de música, empilhados e
dispostos aleatoriamente. O cd de música que está sobre os demais é uma
gravação doméstica, com uma seleção de músicas escritas no estojo e enumeradas
à mão: “1 – Jar of hearts – Christina Perri; 2 – Are you lonesome tonight –
Elvis Presley; 3 – A time for us – Andy Williams; 4 – Let me try again – Frank
Sinatra; 5 – Romeo and Juliet’s love theme – Nino Rota; 6 – The way we were –
Barbra Streisand; 7 – Cinema Paradiso – Chris Botti; 8 – Rapsody on a theme of
Paganini – John Barry; 9 – Speak to me – Amy Lee; 10 – Love is a losing game –
Amy Winehouse; 11 – A world without you – Bad Boys Blue; 12 – Look what you’ve
done – Jet; 13 – Other side of the world – KT Tunstall; 14 – Drugs don’t work –
The Verve; 15 - A Thousand Years – Christina Perri.”
Do cesto de vime, fazendo
precisamente um ângulo de 90 graus, está a porta do banheiro aberta. No
banheiro há um balcão de pia, coberto com mármore travertino, e, atrás dele, um
enorme espelho em toda a sua extensão, do chão ao teto; um vaso sanitário ao
lado, e, em seguida, uma lixeira em madeira branca laqueada. Sobre o mármore da
pia, um laptop Acer branco, com o Spotify Web reproduzindo músicas de Chico
Buarque, com a tecla randômica acionada. Do outro lado, próximo a uma janela,
em mansarda, numa espécie de água-furtada, uma banheira branca vitoriana quase transbordando.
Uma espuma branca cobre toda a lâmina d’água e a água morna deixa escapar um
leve vapor. O perfume suave de quatro velas aromáticas amarelas dispostas no
peitoral da janela se mistura com a marcante fragrância de patchouli da espuma
da água quente da banheira. As músicas complementam a atmosfera nostálgica da
cena.
Uma mulher, repentinamente,
emerge da água e, em movimentos lentos e graciosos, senta-se colocando as mãos
no rosto para liberar a respiração. As mãos vão do rosto aos cabelos castanhos,
escurecidos e alisados pela água, e, fazendo um rabo de cavalo forçado e
torcido, as pontas dos cabelos são colocadas próximas ao seio direito. O corpo
da mulher é singularmente belo, desenhado com exuberância ímpar, cuja idade,
discretamente, deveria ser medida, não em anos, mas em pouco mais que 25 pri-ma-ve-ras;
pele cálida e alva, agora escorregadia pela água e o sabonete; seios medianos
com aréolas roseadas e angelicais; pernas e braços longos, esguios e bem
torneados; uma imperceptível marca de queimadura no braço esquerdo. A face da
mulher exibe mais jovialidade sem maquiagem, ressaltada pelos olhos límpidos,
com pupilas, em castanho-claro, generosas e cheias o suficiente para preencher
perfeitamente o espaço entre as pálpebras de cílio longos; o nariz ferino com narinas aguçadas harmonicamente; os
lábios carnudos, de um rubro raro, daqueles que, irrecusavelmente, clamam mesmo
que calados. Boca cuja inata maleabilidade é capaz de gerar desde indulgentes
beijos, dóceis e irrecusáveis sim(s), até mordazes não(s).
Uma canção desperta uma
lembrança, trazendo ao rosto da mulher feições de felicidade recorrente, no
exato momento em que Chico canta os versos: “...O
que será que me dá (?)/ Que me queima por dentro, será que me dá/ Que me
perturba o sono, será que me dá/ Que todos os tremores me vêm agitar/ Que todos
os ardores me vêm atiçar/ Que todos os suores me vêm encharcar/ Que todos os
meus nervos estão a rogar/ Que todos os meus órgãos estão a clamar/ E uma
aflição medonha me faz implorar/ O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que
não tem governo, nem nunca terá/ O que não tem juízo”. A sagacidade de
predadora não lhe falha e seu instinto exala pelos poros da pele, mas, por
algum motivo muito particular, permaneceu indiferente ao perceber a presença do
inofensivo invasor de privacidade. Ao olhar para o espelho, seu interesse parece
estar muito além do reflexo. O esboço farto de um sorriso, suficiente para
expor a celestial brancura dos dentes, é apenas uma isca. O intruso está
descoberto.
Com um fatal feixe de luzes do
sorriso, sou atingido e nossos olhos enfim se encontram através do espelho. A
imagem da mulher sorrindo é cinematográfica, entretanto também é fugaz e, em
uma névoa esvoaçante, se desmancha no ar. Imediatamente, sou sugado para um
túnel longo e escuro. Como “takes” de
algum filme, o quadro congelado da cena da mulher sorrindo vai, gradativamente,
diminuindo, para, em poucos segundos, se tornar apenas mais um pontinho
luminoso na escuridão do céu. A canção de Chico ainda permanece cadenciada a
ecoar pela noite. Sabe? Não doeria assim tanto, se enfim admitisse que parece
ser tão pueril resignar-se com fragrância de Patchouli, com músicas, filmes, livros.
Todavia, em doses homeopáticas, são, certamente, preventivos de Alzheimer.
“The
past is but the beginng of the beginng,
and
all that is or has been
is
but the twilight of the dawn.” (H.
G. Wells)