Propositalmente, cheguei tarde àquela apresentação, poucos minutos antes
do que realmente me interessava. Como imaginava, meu assento estava lá, o único
ainda vago. Só não previra a vizinhança de um fumante e de uma obesa. E não adianta
conjeturar, pois todas as hipóteses sucumbem diante do fato.
Os poucos, porém longos, minutos que antecederam à aparição de Mariana
custaram-me mais que o ingresso. Contribuíram sobremaneira aquele cheiro
sufocante de nicotina na respiração e nos dedos do homem de meia idade à minha
esquerda e a pressão do corpo descomunal da mulher obesa à direita. Não é
preciso muito talento para prever o futuro das pessoas, principalmente em se
tratando de algo tão óbvio, a morte. Irritado pelo desconforto, antecipei-lhes
o fim, em silêncio, com meu exótico passatempo. A causa mortis de meus desconhecidos vizinhos de assento: enfisema
pulmonar e infarto do miocárdio, respectivamente.
Para suavizar o transcorrer lento dos segundos e minimizar a monotonia,
fugi da melhor maneira que conheço, pensando em Mariana. E ri de mim mesmo e
das dezenas de psicólogos pelos quais testei competência por anos. Poderiam até
ter diagnosticado, com respeitável imperícia, como obsessão, compulsão,
síndrome pós-traumática, mas para mim sempre foi apenas um tipo salutar de
cacoete de fuga. E era para as minhas lembranças com Mariana que eu corria para
fugir do tédio e do marasmo dos dias.
Quase vinte anos se passaram e eu estava ali de novo, como sempre. Mas
Mariana não, ela estaria diferente, muito diferente. O prospecto dizia que, no
encerramento, ela faria um solo, acompanhada pela orquestra de câmara. Para ser
sincero, pouco me importava o repertório e como seria sua apresentação. Eu
queria apenas revê-la. Matar um pouco a saudade.
Quando ela apareceu no palco, iluminada por um holofote, todos então se
calaram a ponto de se ouvir o som dos seus passos em direção ao microfone,
entrecortado por uma tosse aqui, outra ali. Previsível. Estava linda, mas minha
análise de beleza quanto à Mariana é suspeita e nunca será confiável. Num
vestido branco longo, cabelo com brilho-umidificado, esticado e preso na nuca,
as mais delicadas orelhas expondo dois pequenos brincos. Não pude evitar mais
uma viagem ao passado.
A apresentação foi breve e seu efeito pareceu me deixar em estado
catatônico. Absorvido pela voz e pelo ritmo. Não me contive e me socorri de um
lenço providencial que não sei como mas estava no bolso do casaco. Evitei o
tumulto do final e me dirigi à saída durante os aplausos. Minha presença ali
era insignificante, pois para Mariana eu há muito não mais existia. Eis o diagnóstico
frio da morte em vida, o destino dos fúteis ex-amores-pra-sempre.
Antes de atingir a porta, num equívoco necessário, voltei-me ainda mais uma vez
para o palco a ponto de vê-la recebendo flores de um homem. No que ela retribuiu
com um abraço e um beijo, na boca, longo o suficiente para deixar claro o grau
de comprometimento.
Mariana sempre fora uma romântica, muito embora nunca concordasse
verbalmente com minhas observações conclusivas, taxando-as sempre de prematuras.
Ela o amava, muito provavelmente. Um sentimento puro e inestimável que um dia
fora direcionado só para mim. Um orgulho para mim, mais que tristeza da
saudade. Aquela imagem ficou gravada, muito a contragosto, na minha retina, e,
enquanto tomava a rua, excepcionalmente, deixei Mariana de lado, passando a
conjeturar sobre ele. Aquele com quem Mariana passaria seus dias nas próximas
duas décadas e meia. Esperava prognóstico melhor, mas lamentavelmente já sabia
de antemão que só voltaria a ver Mariana em exatos 25 anos, 4 meses e dois
dias. No funeral do marido. Quando poderei me reaproximar, então
definitivamente.
Não, não é agouro ou qualquer outro sentimento motivado por ciúme ou
inveja. Apenas uma espécie esdrúxula de penitência. A minha. O preço que cada
coisa tem e pela qual devemos pagar. O amor, para mim, é algo sobre o qual
nunca ousei um questionamento. Existe e basta, é definitivo. Jamais coloquei
tal sentimento sob suspeição ou o subestimarei, como algum elaborado método de
automutilação. Enquanto meus passos mecanicamente me levavam para qualquer
lugar que não fosse à solidão do meu quarto de hotel, a lembrança ainda virgem
me veio e passei a murmurar involuntariamente aquela canção que Mariana recém
interpretara de maneira tão comovente. Refletindo melhor, talvez fosse eu quem
deveria estar cantando aqueles versos de Moacyr Franco [... eu nunca mais vou te esquecer... eu nunca
mais vou te esquecer... meu amor...].
Minhas experiências auto-sugestivas nunca foram tão fortes, eficientes e
costumo ser realmente muito egoísta, além de egocêntrico. Mas é mais forte que
eu, excede, foge de mim e o que devo fazer? Resignar-me, pois, para quem vive
pra sempre, o que é o tempo? Nada, absolutamente nada! É viver ou deixar
morrer.
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