quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Um nictófobo improvável


Propositalmente, cheguei tarde àquela apresentação, poucos minutos antes do que realmente me interessava. Como imaginava, meu assento estava lá, o único ainda vago. Só não previra a vizinhança de um fumante e de uma obesa. E não adianta conjeturar, pois todas as hipóteses sucumbem diante do fato.

Os poucos, porém longos, minutos que antecederam à aparição de Mariana custaram-me mais que o ingresso. Contribuíram sobremaneira aquele cheiro sufocante de nicotina na respiração e nos dedos do homem de meia idade à minha esquerda e a pressão do corpo descomunal da mulher obesa à direita. Não é preciso muito talento para prever o futuro das pessoas, principalmente em se tratando de algo tão óbvio, a morte. Irritado pelo desconforto, antecipei-lhes o fim, em silêncio, com meu exótico passatempo. A causa mortis de meus desconhecidos vizinhos de assento: enfisema pulmonar e infarto do miocárdio, respectivamente.

Para suavizar o transcorrer lento dos segundos e minimizar a monotonia, fugi da melhor maneira que conheço, pensando em Mariana. E ri de mim mesmo e das dezenas de psicólogos pelos quais testei competência por anos. Poderiam até ter diagnosticado, com respeitável imperícia, como obsessão, compulsão, síndrome pós-traumática, mas para mim sempre foi apenas um tipo salutar de cacoete de fuga. E era para as minhas lembranças com Mariana que eu corria para fugir do tédio e do marasmo dos dias.

Quase vinte anos se passaram e eu estava ali de novo, como sempre. Mas Mariana não, ela estaria diferente, muito diferente. O prospecto dizia que, no encerramento, ela faria um solo, acompanhada pela orquestra de câmara. Para ser sincero, pouco me importava o repertório e como seria sua apresentação. Eu queria apenas revê-la. Matar um pouco a saudade.

Quando ela apareceu no palco, iluminada por um holofote, todos então se calaram a ponto de se ouvir o som dos seus passos em direção ao microfone, entrecortado por uma tosse aqui, outra ali. Previsível. Estava linda, mas minha análise de beleza quanto à Mariana é suspeita e nunca será confiável. Num vestido branco longo, cabelo com brilho-umidificado, esticado e preso na nuca, as mais delicadas orelhas expondo dois pequenos brincos. Não pude evitar mais uma viagem ao passado.

A apresentação foi breve e seu efeito pareceu me deixar em estado catatônico. Absorvido pela voz e pelo ritmo. Não me contive e me socorri de um lenço providencial que não sei como mas estava no bolso do casaco. Evitei o tumulto do final e me dirigi à saída durante os aplausos. Minha presença ali era insignificante, pois para Mariana eu há muito não mais existia. Eis o diagnóstico frio da morte em vida, o destino dos fúteis ex-amores-pra-sempre. Antes de atingir a porta, num equívoco necessário, voltei-me ainda mais uma vez para o palco a ponto de vê-la recebendo flores de um homem. No que ela retribuiu com um abraço e um beijo, na boca, longo o suficiente para deixar claro o grau de comprometimento.

Mariana sempre fora uma romântica, muito embora nunca concordasse verbalmente com minhas observações conclusivas, taxando-as sempre de prematuras. Ela o amava, muito provavelmente. Um sentimento puro e inestimável que um dia fora direcionado só para mim. Um orgulho para mim, mais que tristeza da saudade. Aquela imagem ficou gravada, muito a contragosto, na minha retina, e, enquanto tomava a rua, excepcionalmente, deixei Mariana de lado, passando a conjeturar sobre ele. Aquele com quem Mariana passaria seus dias nas próximas duas décadas e meia. Esperava prognóstico melhor, mas lamentavelmente já sabia de antemão que só voltaria a ver Mariana em exatos 25 anos, 4 meses e dois dias. No funeral do marido. Quando poderei me reaproximar, então definitivamente.

Não, não é agouro ou qualquer outro sentimento motivado por ciúme ou inveja. Apenas uma espécie esdrúxula de penitência. A minha. O preço que cada coisa tem e pela qual devemos pagar. O amor, para mim, é algo sobre o qual nunca ousei um questionamento. Existe e basta, é definitivo. Jamais coloquei tal sentimento sob suspeição ou o subestimarei, como algum elaborado método de automutilação. Enquanto meus passos mecanicamente me levavam para qualquer lugar que não fosse à solidão do meu quarto de hotel, a lembrança ainda virgem me veio e passei a murmurar involuntariamente aquela canção que Mariana recém interpretara de maneira tão comovente. Refletindo melhor, talvez fosse eu quem deveria estar cantando aqueles versos de Moacyr Franco [... eu nunca mais vou te esquecer... eu nunca mais vou te esquecer... meu amor...].

Minhas experiências auto-sugestivas nunca foram tão fortes, eficientes e costumo ser realmente muito egoísta, além de egocêntrico. Mas é mais forte que eu, excede, foge de mim e o que devo fazer? Resignar-me, pois, para quem vive pra sempre, o que é o tempo? Nada, absolutamente nada! É viver ou deixar morrer.



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